
Uma das consequencias mais lastimáveis de se autoproclamar “infalível” é não poder admitir que errou quando tenta consertar o erro. Assim, em vez de admitir aberta e honestamente que errou no passado no que tange a certo ponto, e que agora está revisando o erro, prefere fazer malabarismos mentais na tentativa de conciliar tanto o erro quanto a mudança, como se fossem a mesma coisa, apenas dita sob “perspectivas diferentes”. Talvez nenhum outro exemplo seja mais admirável do que o da salvação fora da Igreja Católica (leia-se “Romana”) no ponto de vista dos próprios papistas.
Até o começo do século passado, se você perguntasse a qualquer bispo ou papa se é possível alguém se salvar não sendo católico, a resposta óbvia, categórica e automática seria um sonoro: “NÃÃÃÃÃOOOO!!!”. Hoje em dia, no mundo moderno e ecumênico em que vivemos, se você fizer a um bispo ou ao papa essa mesmíssima pergunta, a resposta será um: “Veja bem, meu caro...”.
Não há nada que seja mais explícito, claro, direto e categórico nos documentos antigos da Igreja Romana quanto a completa impossibilidade de alguém se salvar não sendo católico romano e sem estar sujeito ao pontífice romano. Os documentos oficiais da Igreja podiam ser dúbios em muitos aspectos, mas certamente não neste. O Concílio de Florença (1431-1445), por exemplo, afirmava categoricamente:
“A Igreja crê firmemente, professa e prega que todos aqueles que estão fora da Igreja Católica, não só pagãos, mas também judeus ou hereges e cismáticos, não podem compartilhar a vida eterna e irão para o fogo eterno que foi preparado para o diabo e seus anjos, a menos que eles estejam ligados à Igreja Católica antes do final de suas vidas, pois a unidade do corpo eclesiástico é de tal importância que somente aqueles que recebem os sacramentos da Igreja contribuem para a salvação, fazendo jejuns, obras de piedade e práticas cristãs que produzem recompensas eternas, e ninguém pode ser salvo, não importa o quanto tenha doado em esmolas e até mesmo se derramou o seu sangue em nome de Cristo, a menos que tenha perseverado no seio e na unidade da Igreja Católica”[1]
Mais claro do que isso é impossível. Se você fosse pagão, judeu, “herege” ou “cismático” (ou seja, qualquer coisa que não seja católico romano, para eles), você está lascado, e o “fogo eterno” está à sua espera, aguardando-lhe ansiosamente para torturar-lhe por não ter sido católico. Sem receber os sacramentos da ICAR, não adianta dar esmolas e nem mesmo ser um mártir: já era. Sem chances. Hasta la vista, baby.
Entre as teses condenadas de John Wycliffe pelo Concílio de Constança (1414-1418), está a de que “não é necessário para a salvação acreditar que a Igreja Romana é suprema entre as outras igrejas”[2]. O que implica, obviamente, que é necessário para a salvação acreditar na supremacia papal, o que manda direto para o quinto dos infernos todos os protestantes e ortodoxos.
O “Catecismo Maior”, de 1905, mantém este mesmo parecer, sob a forma de perguntas e respostas rápidas. Segue algumas delas:
153 – Então não pertencem à Igreja de Jesus Cristo as sociedades de pessoas batizadas que não reconhecem o Romano Pontifice por seu chefe?
Resposta – Todos os que não reconhecem o Romano Pontifice por seu chefe, não pertencem à Igreja de Jesus Cristo.
168 – Pode alguém salvar-se fora da Igreja Católica, Apostólica, Romana?
Resposta – Não. Fora da Igreja Católica, Apostólica, Romana, ninguém pode salvar-se, como ninguém pôde salvar-se do dilúvio fora da arca de Noé, que era figura desta Igreja.
Mais claro do que isso, impossível. As chances de alguém ser salvo fora da Igreja Romana e sem reconhecer o papa como Sumo Pontífice são as mesmas de alguém que não entrou na arca de Noé sair vivo do dilúvio, ou seja, nada. Por essa razão, o papa Bonifácio VIII, em sua bula Unam Sanctam (1302), decreta que “é absolutamente necessária para a salvação que toda criatura humana esteja sujeita ao Pontífice Romano”[3]. Sobre essa bula papal, a Enciclopédia Católica reconhece que:
“A Bula Unam Sanctam reza as proposições dogmáticas da Igreja Católica e a necessidade de se pertencer a ela para a salvação eterna. A posição do papa como líder supremo da Igreja e o dever desde então crescente de submissão ao papa com o objetivo de pertencer à Igreja e, portanto, obter salvação”[4]
E o famoso Concílio de Latrão (1123), logo em seu primeiro cânon, já dispara o que era o mais importante para a época:
"Há apenas uma Igreja universal dos fiéis, fora da qual absolutamente ninguém é salvo, em que Jesus Cristo é tanto sacerdote e sacrifício”[5]
Contudo, os documentos mais modernos da Igreja, que datam da metade do século passado para cá, tem mudado o tom de tudo aquilo que era dito até então, dando razão ao choro de tradicionalistas da Montfort que não reconhecem a autoridade do Concílio Vaticano II e ao berro dos sedevacantistas que creem que todos os últimos papas são ilegítimos e que a “cátedra de Pedro” se encontra atualmente desocupada. Na carta do S. Ofício ao arcebispo de Boston, em 8 de outubro de 1949, a história já começa a mudar, tomando rumos diferentes do que era dito até então. De repente, de uma hora pra outra, “não é sempre necessário” que esteja efetivamente na Igreja (Romana) para ser salvo:
“Para que alguém obtenha a salvação eterna não é sempre necessário que seja efetivamente incorporado à Igreja como membro, mas requerido é que lhe esteja unido por voto e desejo”[6]
Como vemos, basta “desejar” a salvação oferecida pela Igreja Romana que já é suficiente; não é mais necessário receber efetivamente os sacramentos (como diz o Concílio de Florença), nem mais necessário reconhecer o papa como Sumo Pontífice (como diz o Catecismo Maior). Agora, basta ter “vontade”...
O mesmo documento diz ainda:
"Todavia, não é sempre necessário que este voto seja explícito como o é aquele dos catecúmenos, mas, quando o homem é vítima de ignorância invencível, Deus aceita também o voto implícito, chamado assim porque incluído na boa disposição de alma pela qual essa pessoa quer conformar sua vontade à vontade de Deus”[7]
Nada de exigir submissão ao bispo romano ou ter parte efetiva nos sacramentos: agora basta ter “boa disposição” que a galera não-católica já pode entrar na arca de Noé.
O atual Catecismo da Igreja Católica mantém este mesmo parecer modernista e revisionista afirmando:
“Graças a Cristo e à sua Igreja, podem conseguir a salvação eterna todos os que, sem culpa própria, ignoram o Evangelho de Cristo e a sua Igreja mas procuram sinceramente Deus e, sob o influxo da graça, se esforçam por cumprir a sua vontade, conhecida através do que a consciência lhes dita”[8]
Veja só que maravilha: agora não precisa nem mais do “voto implícito”, que mesmo os que ignoram o Evangelho e a Igreja (Romana) já podem ser salvos se “procuram sinceramente a Deus”. Se eu procuro a Deus com sinceridade, posso ignorar o Evangelho e a Igreja Romana e ser salvo do mesmo jeito. É show de bola, ecumenismo e tolerância pra dar e vender!
O “Decreto Unitatis Redintegratio”, sobre o ecumenismo, é outra pérola rica de amabilidade e tolerância religiosa, colocando na sola do sapato aqueles documentos velhos e ultrapassados (embora ainda infalíveis) que diziam que é preciso ser católico romano para ser salvo. O documento em questão afirma:
“Também não poucas ações sagradas da religião cristã são celebradas entre os nossos irmãos separados. Por vários modos, conforme a condição de cada Igreja ou Comunidade, estas ações podem realmente produzir a vida da graça. Devem mesmo ser tidas como aptas para abrir a porta à comunhão da salvação. Por isso, as Igrejas e Comunidades separadas, embora creiamos que tenham defeitos, de forma alguma estão despojadas de sentido e de significação no mistério da salvação. Pois o Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como de meios de salvação cuja virtude deriva da própria plenitude de graça e verdade confiada à Igreja Católica”[9]
Falando sobre os “irmãos separados” (em vez de “rebelados”, “filhos da serpente” ou “descendentes do dragão”, como os apologistas católicos nos tratam), este documento, em vez de dizer que todos os evangélicos estão condenados ao “fogo eterno” por não reconhecerem a supremacia papal e não receber os sacramentos católicos, diz que:
• Essas igrejas nossas podem realmente produzir a vida da graça.
• Essas igrejas nossas podem abrir a porta à comunhão da salvação!
• Essas igrejas nossas não estão de forma alguma despojadas do “mistério da salvação”.
• O Espírito Santo usa as nossas igrejas como meios de salvação!
Se o papa Bonifácio VIII e os bispos dos concílios de Latrão, Florença e Constança estivessem vivos hoje, morreriam do coração (ou abririam outra igreja católica sedevacantista). Os que condenaram Wycliffe por ele ter dito o mesmo que este documento católico moderno devem estar se revirando no túmulo. E os que elaboraram o Catecismo Maior teriam um enfarte se vissem que este mesmo documento católico modernista assevera que a Igreja é apenas o meio “geral” de salvação, e não mais o “único” meio:
“Só pela Igreja católica de Cristo, que é o meio geral de salvação, pode ser atingida toda a plenitude dos meios salutares”[10]
Diante disso tudo, o padre Gargamel Paulo Ricardo, sempre ele, fez um artigo engraçadíssimo onde tenta dar uma de malabarista de circo e conciliar estes documentos claramente contraditórios, mas sua tentativa foi tão miserável e fracassada que a conclusão foi que até Mahatma Gandhi poderia ser salvo!
Ele diz:
“Suponha-se que um pagão, como Mahatma Gandhi, se tenha salvado. Como homem de boa vontade, ele salvou-se unido de alguma forma ao mistério da Igreja Católica”[11]
Pelo jeito, a “arca de Noé” está ficando cada vez maior e mais espaçosa. Agora, não é preciso nem reconhecer o papa como pontífice supremo, nem receber os sacramentos, nem mesmo ser católico, porque Gandhi não era nada disso e, mesmo assim, na opinião do padre Paulo Ricardo pode ter sido salvo “misteriosamente”. Com uma arca tão grande assim, parece que o dilúvio não é um problema. A capacidade da Igreja Romana em conciliar documentos infalíveis e contraditórios entre si mediante malabarismos de Cirque du Solei é tão notável que daqui alguns séculos não estarão mais discutindo se existe salvação fora da Igreja Católica, mas se existe salvação na Igreja Católica.
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
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[1] Concílio de Florença, 1431-1445.
[2]Concílio de Constança, Sessão 8.
[3] Papa Bonifácio VIII, Unam Sanctam, Rome: 1302.
[4] Enciclopédia Católica. Disponível em: http://www.newadvent.org/cathen/15126a.htm
[5] Concílio de Latrão, Cânon 1.
[6] Carta do S. Ofício ao arcebispo de Boston, 8 de outubro de 1949. Cf. Denzinger-Hünnermann, n. 3867-3870.
[7]ibid.
[8] Catecismo da Igreja Católica – Compêndio, n. 171.
[9] Decreto Unitatis Redintegratio - Sobre o Ecumenismo.
[10]ibid.