
Em primeiro lugar, feliz ano novo a todos. Fiquei a última semana sem mexer no blog e sem atualizar nada, mas agora os comentários antigos já estão sendo publicados/respondidos.
Meu último artigo antes da minha ausência foi sobre "Roma locuta est; causa finita est" (“Roma falou, a causa acabou”), onde eu refuto a péssima interpretação de texto e a completa descontextualização histórica que os papistas fazem ao usar isso como argumento para a infalibilidade ou a supremacia papal, como se Roma tivesse a autoridade final e o que ela dissesse não pudesse ser jamais postergado ou rejeitado. Este artigo é uma continuação ao tema, que abordará a divergência pascoal entre os bispos romanos e asiáticos no século II, divergência essa que é outra prova de que Roma locuta est; causa non finita est.
Como já observado em meu artigo "O telefone sem fio e a tradição oral", nenhuma tradição oral que não seja passada por escrito tem a capacidade de conservar inalteravelmente um conteúdo por muito tempo, tendo sempre a tendência de subtrair ou adicionar conteúdo novo à mensagem original. É por isso que até mesmo quando nos é dito o que comprar no Supermercado nós não confiamos na nossa memória, mas, em vez disso, fazemos questão de anotar em um papel o que tem que ser comprado, caso contrário poderemos esquecer algum item ou talvez até mesmo comprar algo desnecessário.
Se até mesmo quando vamos comprar algo no Supermercado temos que anotar em um papelzinho para não cometer nenhuma falha, quanto mais quando o que está em jogo é toda a doutrina apostólica, que deveria ser guardada incorruptível e inalterável pelos séculos dos séculos, em todas as igrejas do Oriente e do Ocidente. Obviamente, é somente a partir do que foi conservado por escrito que podemos ter certeza da mensagem original, e o que os apóstolos nos deixaram por escrito é justamente o que nos foi legado na Escritura – daí vem o termo Sola Scriptura, importantíssimo e verdadeiro princípio da Reforma.
A divergência pascoal é outra demonstração do quanto a tradição oral sem ser passada por escrito tem o potencial enorme de ser corrompida com o tempo. De um lado estavam os bispos romanos, que diziam que a páscoa tinha que ser celebrada no domingo. Do outro, os bispos da Ásia, que diziam que a páscoa devia ser comemorada na data tradicional de 14 de Nisã, a chamada “Páscoa Quartodecimana”. O mais interessante é que os dois lados da história diziam estar bem fundamentados na “tradição oral”, já que nenhum apóstolo escreveu sobre o dia em questão.
Os bispos romanos sustentavam guardar a tradição que já vinha desde os seus primeiros presbíteros, e os bispos asiáticos afirmavam guardar a tradição ensinada pelos apóstolos Filipe e João, que estabeleceu igrejas em Éfeso. No entanto, as tradições eram conflitantes, o que mostra que pelo menos uma delas não se preservou incorruptivelmente, demonstrando a facilidade com a qual uma tradição oral pode se corromper tão rapidamente como em questão de apenas um século, como é o caso aqui (e os papistas ainda acham que guardam incorruptivelmente centenas de tradições por vinte séculos!).
O primeiro conflito ocorreu entre o bispo romano Aniceto (155-166) e Policarpo (69-155), o famoso bispo de Esmirna que foi pessoalmente doutrinado pelo apóstolo João. Tendo o bispo de Roma defendido a comemoração da páscoa no domingo, seria de se esperar que Policarpo cedesse à primazia e infalibilidade do mesmo, renegando seu ponto de vista para dar razão ao Roma locuta est; causa finita est dos romanistas atuais. Mas o que realmente aconteceu foi que nenhum dos dois convenceu o outro e nenhum deles cedeu ao outro, como nos conta Eusébio de Cesareia (265-339) em sua “História Eclesiástica”:
“E encontrando-se em Roma o bem-aventurado Policarpo nos tempos de Aniceto, surgiram entre os dois pequenas divergências, mas em seguida estavam em paz, sem que sobre este capítulo se querelassem mutuamente, porque nem Aniceto podia convencer Policarpo a não observar o dia– como sempre o havia observado, com João, discípulo de nosso Senhor, e com os demais apóstolos com quem conviveu–, nem tampouco Policarpo convenceu Aniceto a observá-lo, pois este dizia que devia manter o costume dos presbíteros seus antecessores”[1]
O que fez Policarpo de Esmirna, quando viu que o grande e todo-poderoso bispo de Roma defendia uma posição contrária à sua? Disse em voz alta que Roma locuta est; causa finita est, e voltou para Esmirna de cabeça baixa?Não. Ao contrário, conservou sua posição sobre o assunto e não cedeu ao bispo romano, da mesma forma que o bispo romano também não cedeu a Policarpo.
A mesma divergência veio a ocorrer pouco tempo mais tarde, mas desta vez de forma bem mais tensa do que foi entre Aniceto e Policarpo. Isso porque subiu ao trono romano um papa arrogante chamado Vítor (189-199), que entrou na mesma polêmica com Polícrates, o bispo de Éfeso da época. Diferente de seu antecessor Aniceto, Vítor era orgulhoso e queria obrigar todo mundo a concordar com ele, chegando até mesmo a ameaçar excomungar os bispos da Ásia(!) na ocasião.
O que foi que os bispos da Ásia fizeram frente à reivindicação do raivoso e irado bispo de Roma? Disseram Roma locuta est; causa finita est, e foram para as suas casas comemorar a páscoa no domingo? Nananinanão. Mais uma vez, eles ficaram contra o bispo de Roma, e o repreenderam severamente, como nos conta Eusébio:
“Também restam as expressões que empregaram repreender com grande severidade a Vitor. Entre eles também estava Irineu”[2]
O termo usado no original em que o bispo romano foi repreendido pelos outros bispos foi plêktikôteron kazaptomenôn tou Biktoros,que é muito mais forte do que uma simples repreensão, tendo kazaptô o sentido de “atacar” ou “atirar-se para cima de alguém”. Como se isso não bastasse, Eusébio adiciona ao kazaptô o advérbio plêktikôteron, que significa “duramente” (de plêktikos, à porrada)[3]. De modo que o arrogante bispo romano não foi contradito de forma suave enquanto tomava um cafezinho com os bispos da Ásia, mas foi severa e asperamente repreendido, como em uma briga.
Note ainda que Eusébio diz que até Irineu estava entre os bispos que repreenderam a Vítor. Irineu nem bispo da Ásia era: ele era bispo de Lyon, sujeito ao metropolitano de Roma. Ou seja, o bispo de Roma foi tão irresponsável e leviano que foi severamente repreendido até mesmo pelos bispos que estavam sob sua jurisdição! O erudito patrístico Hans van Campenhausen adiciona que Irineu escreveu uma carta repreendendo mais ainda o bispo de Roma:
“Quando Vítor de Roma aceitou ser persuadido a romper relações eclesiásticas com as igrejas da Ásia Menor, por causa das diferenças duradouras sobre a festa da Páscoa, Irineu lhe escreveu uma vigorosa carta na qual condenava esta ação ditatorial de uma maneira conveniente”[4]
Roma locuta est; causa finita est? Não! Roma falou... e os outros bispos o repreenderam severamente e não deixaram que Roma falasse nem um pio a mais. O bispo de Roma não era um reizinho infalível cuja posição devesse ser sempre acatada como autoridade final; ao contrário, era um bispo como todos os outros, que podia ser acatado quando estivesse certo, da mesma forma com que podia ser rejeitado ou severamente repreendido quando estivesse errado. O mito papista de que a palavra do bispo romano sempre encerrará qualquer discussão não passa de puro engodo para ludibriar os mais ingênuos e facilmente adestrados por este sistema apóstata e falido.
• Leia também: “A controvérsia pascal - um dos primeiros episódios que atestam o primado do bispo de Roma?”
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