
Uma das falácias mais comuns é a inversão do ônus da prova. Para quem não sabe, o “ônus da prova” é a obrigação de um indivíduo em provar sua posição. Quando dizemos que o ônus da prova está sobre Fulano e não sobre Beltrano, queremos dizer que não é Beltrano que tem que provar sua posição, mas sim Fulano. Isso pressupõe que a posição de Beltrano, neste caso, é a posição-padrão, e uma posição-padrão só pode ser alterada se há provas muito boas de que essa alteração no caso específico é necessária.
Vamos exemplificar isso com algo mais prático. Suponhamos que Fulano acuse Beltrano, dizendo Beltrano escondeu uma bomba em algum lugar de São Paulo, e que ele é um terrorista que quer matar todo mundo. Imagine como seria se fosse Beltrano que tivesse que provar que ele não escondeu a bomba. Obviamente, não é possível provar esse tipo de coisa. Beltrano pode mostrar evidências de que é uma boa pessoa, mas não pode provar acima da dúvida de que ele nunca escondeu uma bomba, a não ser que levasse consigo uma câmera filmando 24h por dia todos os seus movimentos, o que não é o caso.
Portanto, o ônus da prova recai totalmente sobre Fulano. É o Fulano que tem que provar que Beltrano escondeu uma bomba, e não Beltrano que tem que provar que não escondeu. Na pior das hipóteses, tudo o que Beltrano precisa fazer é rebater os argumentos usados por Fulano, sem a necessidade de “provar” coisa alguma. Isso presume uma posição-padrão, que é a de que todo mundo é inocente até que se prove o contrário.
No mundo dos debates, constantemente há uma posição-padrão, e, consequentemente, o ônus da prova nos ombros daquele que deseja alterar essa posição-padrão em alguma circunstância especial. Mas, na maioria das vezes, a questão do ônus da prova é tão mal discernida que um charlatão consegue impor o ônus da prova ao outro, mesmo quando é ele mesmo que precisava provar algo, por estar afirmando alguma coisa na direção contrária da posição-padrão. E, pior ainda, muita gente inocente acaba caindo nesse falso discurso, e trabalhando exaustivamente para provar algo que simplesmente não é necessário, pela inversão do ônus da prova. Ou seja: estão como Beltrano, tentando provar que não escondeu uma bomba em algum lugar de São Paulo.
Vamos trazer isso para dentro da discussão em questão: a Sola Scriptura. Os apologistas católicos são extremamente hábeis em conseguir inverter o ônus da prova com êxito nos debates. Eles conseguem, na maioria das vezes, fazer com que o protestante pense que é ele que tem a obrigação de provar a Sola Scriptura, em vez de ser o católico que precisa provar a tradição oral. E os evangélicos têm mordido a isca, lastimavelmente.
Você já deve ter ouvido um milhão de vezes coisas do tipo: “Prove a Sola Scriptura!”; ou então: “Onde está a Sola Scriptura na Bíblia?”. E como de fato é possível provar (veja aqui, por exemplo), os evangélicos têm dado mais atenção a essas provas do que se dado conta de que uma inversão do ônus da prova está ocorrendo aqui. Ele está sendo colocado contra a parede, quando, pela lógica, deveria estar acontecendo o contrário. Não somos nós que precisamos provar a Sola Scriptura, são eles que precisam provar a tradição oral e invalidar, por conseguinte, a Sola Scriptura. Em outras palavras, a Sola Scriptura é a posição-padrãoem questão.
Mas, afinal, como saber se a Sola Scriptura é a posição-padrão? Basta comparar a lógica empregada com qualquer outro documento ou personagem da antiguidade. Sola Scriptura é um termo em latim que significa “somente a Escritura”. Embora os cristãos geralmente o usem no sentido de Bíblia (com “e” maiúsculo), qualquer documento escrito pode ser considerado “escritura” (com “e” minúsculo). E talvez o católico nunca tenha pensado nisso, mas ele também é sola scripturista para muitas coisas na história, ainda que não reconheça isso abertamente.
Em meu artigo "Como funciona a Sola Scriptura de forma simples e prática", eu exemplifico isso através de uma analogia com Platão. Suponhamos que você deseja conhecer toda a doutrina deste filósofo grego, seja para ser um adepto da ideologia, ou para realizar algum trabalho acadêmico, ou mesmo apenas para conhecer. Quais fontes você teria? Vejamos: você teria os escritos de Platão e os escritos dos discípulos de Platão. Em outras palavras, você teria sola scriptura (=somente escritura). Você não teria nada como uma “tradição oral” duvidosa e fantasmagórica, supostamente transmitida de boca em boca até os dias de hoje, para fundamentar a sua pesquisa.
Se você fizer um trabalho acadêmico sobre Platão e citar algo sem referência escrita nenhuma, dizendo que aquilo “veio oralmente”, mas sem citar de onde veio, de quem veio, quando veio, onde foi registrado, etc, você simplesmente levará um zero de nota. Se Platão vivesse nos dias de hoje, poderíamos usar aquilo que ele escreveu e também seus vídeos e áudios, mas como ele viveu há tanto tempo, só nos resta o que foi escrito como tendo sido conservado até nós.
Um aluno que estudasse tudo sobre Platão e então fizesse uma tese de dissertação sobre o mesmo, usando apenas referências escritas da época (i.e, sola scriptura), estaria fazendo somente o óbvio. Mas um aluno que usasse também supostos ditos orais sem nenhuma referência direta de um escrito de Platão ou de um discípulo dele teria que prestar contas aos seus orientadores e estaria em apuros. Em outras palavras, é ele que tem que provar que essas supostas “fontes não-escritas” sobre Platão dizem mesmo aquilo que ele afirma que dizem. O ônus da prova não está sobre quem usa o princípio da sola scriptura, mas sobre quem o invalida.
No artigo supracitado, eu trabalho com outra analogia:
“Eu estou escrevendo uma tese de dissertação no mestrado chamada ’A Bíblia e a Escravidão’. O propósito é estudar a temática da escravidão à luz da Bíblia e também à luz da história secular. Quais as fontes que eu poderia usar para o meu trabalho? Obviamente, fontes escritas. Eu posso usar a própria Bíblia, o Códice de Hamurabi e outros registros dos outros povos, assim como eu posso estudar os escritos de pessoas como Abraham Lincoln, John Wesley e William Wilberforce, que foram fundamentais para o fim da escravidão no mundo. Todas fontes escritas, obviamente. No entanto, imagine qual seria a minha nota na dissertação se eu dissesse alguma informação sem prová-la, e como pretexto alegasse que ‘isso chegou aos meus ouvidos’. Imagine qual seria a cara do meu orientador se eu escrevesse alguma groselha sem nenhum fundamento histórico e me justificasse sob o argumento de que ‘nem tudo o que aconteceu na história da escravidão foi escrito’. Imagine a vergonha que eu passaria se deixasse de lado o que foi escrito para ficar com aquilo que supostamente foi dito oralmente, mas que eu não tenho a menor condição de provar que foi mesmo. Sem dúvidas, a minha nota seria zero e eu seria expulso da faculdade, pois meu registro não teria nenhuma credibilidade”
O mesmo raciocínio pode e deve ser empregado não apenas em relação a Platão, mas também em relação a qualquer outra linha de pensamento de um autor na história. Platão disse muitas coisas que não foram escritas? É óbvio que disse. No entanto, as coisas que ele disse sem ter escrito, nós não sabemos hoje, exatamente porque não foram escritas! Se tivessem sido escritas, nós saberíamos. De modo que, ainda que Platão certamente tenha ensinado muita coisa apenas oralmente, é somente a partir do que foi conservado por escrito(i.e, sola scriptura) que podemos ter hoje acesso à doutrina de Platão. A analogia com a Sola Scriptura da Bíblia é óbvia e autoevidente.
Há algum tempo atrás, um católico veio querer provar que a Sola Scriptura era falsa porque Abraão e Noé viveram antes da época em que a Escritura começou a ser escrita (por Moisés) e que os fatos eram passados apenas oralmente na época. Talvez ele não tenha raciocinado direito, mas o argumento que ele deu é outra prova da Sola Scriptura, visto que nós só sabemos o que eles criam porque foi escrito, e se não tivesse sido escrito nós simplesmente não saberíamos nada sobre a crença deles! Curiosamente, aquele católico não tinha um compilado infalível de tradições orais de Abraão e Noé, fora do que foi escrito (Bíblia). Tudo o que ele sabia sobre Abraão e Noé, vinha daquilo que foi escrito sobre ambos.
Ele também não tinha uma lista de tradições orais do primo de Noé ou do tio de Abraão. Por quê? Porque eles não escreveram nada, e ninguém escreveu sobre eles. Então, não sobrou nada conservado até nós sobre eles. Mas se algo tivesse sido conservado por escrito, ele certamente teria alguma coisa a responder! O católico tenta argumentar contra a Sola Scriptura, usando um raciocínio que leva à... Sola Scriptura. Até ele sabe que só tem o que foi escrito. Embora a fonte da mensagem seja oral e escrita, a única coisa que se conserva com a longa passagem de tempo é o que foi escrito, e não o que foi transmitido oralmente. A Sola Scriptura é a posição-padrão. A “tradição oral” não passa de uma distorção.
Mas se você quiser ser hardcore com o apologista católico, há um jeito ainda mais irônico e engraçado de provar que ele mesmo aprova a Sola Scriptura quando está em sã consciência. Basta perguntar a ele sobre o que ele crê no concernente ao Antigo Testamento. Ele vai resmungar, chorar, blefar, murmurar, surrar a parede, mas no final vai chegar à mesma conclusão dos protestantes malvados: Sola Scriptura!
Sabemos que nem tudo o que Moisés disse foi escrito. Também nem tudo o que Abraão disse foi escrito. Também nem tudo o que qualquer personagem do Antigo Testamento disse foi escrito. E, mesmo assim, os apologistas católicos não têm sequer uma única “tradição oral” preservada de Abraão, Noé, Moisés, Isaías, Davi, etc. Eles só têm o que foi escrito, e só (sola) o que foi escrito (scriptura). Naquela época, os fariseus também diziam guardar as “tradições” dos profetas e de Moisés, mas foi deste jeito que Jesus se referiu a estas tradições não-escritas:
Mateus 5:13– E por que vocês transgridem o mandamento de Deus por causa da tradição de vocês?
Mateus 15:6– Assim vocês anulam a palavra de Deus por causa da tradição de vocês.
Marcos 7:3– Assim vocês anulam a palavra de Deus, por meio da tradição que vocês mesmos transmitiram. E fazem muitas coisas como essa.
Marcos 7:6-7– Bem profetizou Isaías acerca de vós, hipócritas, como está escrito: Este povo honra-me com os lábios, Mas o seu coração está longe de mim; em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens.
Marcos 7:8– Vocês negligenciam os mandamentos de Deus e se apegam às tradições dos homens.
Marcos 7:9– Vocês estão sempre encontrando uma boa maneira para pôr de lado os mandamentos de Deus, a fim de obedecer às suas tradições!
Se alguém tivesse guardado qualquer coisa dita oralmente pelos personagens do Antigo Testamento, esses certamente seriam os líderes religiosos. No entanto, a tradição supostamente “conservada” pelos fariseus estava completamente corrompida, alterando o sentido da própria Escritura Sagrada. Jesus condenou essas tradições, e ficou somente com o que foi escrito (=Sola Scriptura). Os católicos não podem se apoiar nestas tradições orais que o próprio Cristo condenou, e também não tem outras supostamente conservadas.
Logo, o católico também adota a Sola Scriptura no que lhe convém. Pelo menos no que tange ao conteúdo do Antigo Testamento, ele é sola scripturista como os protestantes, embora em relação ao Novo Testamento ele faça exatamente o mesmo que os fariseus faziam com o Antigo. Os argumentos que o católico usa (“onde está na Bíblia?”; “nem tudo foi escrito!!!”, etc) ele mesmo sabe que são fraudes intelectuais, visto que para eles não havia nada explícito no Antigo Testamento prescrevendo que apenas o que foi escrito deveria ser seguido para a época, e mesmo assim eles adotam apenas o que foi escrito na época. E também é óbvio que “nem tudo foi escrito” nos tempos do Antigo Testamento, e, no entanto, eles não têm nenhuma lista de coisas do que “não foi escrito” na época. Falácia total.
A conclusão de toda pessoa sensata é uma só: a sola scripturaé a posição-padrão. Ela é o padrão para o estudo de qualquer doutrina ou indivíduo da antiguidade (ex: Platão e o platonismo), e também o padrão dos próprios católicos em relação ao Antigo Testamento. Portanto, não somos nós que temos que provar o óbvio: são eles que precisam provar que o padrão mudou completamente no Novo Testamento, de modo que agora, de repente, não é mais apenas o que foi escrito que se preserva a longo tempo.
É o católico que tem que provar a existência, autenticidade e incorruptibilidade de suas “tradições” extrabíblicas, e não o protestante que tem que “provar a Sola Scriptura”. A inversão do ônus da prova não passa de um truque para que você seja persuadido do engano, e passe a crer em uma tradição mágica sem fundamento em lugar nenhum, não sendo jamais delimitada em toda a sua extensão e deliberadamente vaga o suficiente para tirar dali quantos e quais coelhos que o mágico quiser.
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
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